E livros? Você lê livros?
Por mais esperanças que eu tivesse, sabia que teria que esperar antes da minha consulta. Apesar de minha pontualidade, o médico tinha um sala de espera. Este é o nome do cômodo e se um médico tem uma, pode ter certeza, ele usará. Para passar o tempo, muitos lêem as desatualizadas revistas. Ou melhor, fingem ler. Tenho a impressão que todos tentam adivinhar qual a doença da pessoa ao lado.
A mulher de meia-idade ao meu lado dava visíveis sinais de impaciência. Inflava suas magras bochechas e soltava o ar em um misto de suspiro e bufo. Folheava revistas sem nenhuma paciência, fazendo com que o som das páginas ecoasse por toda a silenciosa sala de espera.
Também agarrei uma. Perfil Náutico. Passei os olhos pela revista, para logo desistir dela. O tema da publicação tem pouco apelo para mim. Uma desatualizada edição de novembro então nem se fala. Puxei minha Piauí número 17 da bolsa.
Minha vizinha de espera lia comigo sem cerimônia. Ela puxou a conversa:
- Estudante de jornalismo... Gosta de ler?
Essa pergunta seria como perguntar para um estudante de educação física se ele gosta de esportes, mas tudo bem. Percebi que era só retórica, para puxar uma conversa. Ainda tenho um mínimo de trato com seres humanos, por mais que alguns não acreditem. A dedução dela foi graças a minha inseparável bolsa de lona da faculdade.
Respondi que sim. Minha interlocutora disse que adorava ler os clássicos. "Não trocaria milhões de dólares pela minha biblioteca", relatou. Atualmente lia uma biografia da família real portuguesa. Parecia realmente gostar de livros. Havia chegado a minha vez de responder o que lia:
- Ah, eu leio todos os dias o jornal, revistas, como a Piauí aqui e... tudo bem?
Enquanto falava, fazia expressões de quem havia recém se dado conta que meu desodorante estava vencido. Não era o caso. Parecia um indisfarçável desgosto por jornais e revistas. Se eu dissesse que leio blogs de vez em quando, acho que levava uma cusparada.
- E livros? Você lê livros?
- Ah, também todos os dias. Não consigo pregar o olho sem ler uma frase. Inclusive escrevi um - remexia na minha bolsa em busca de um marcador de páginas. Sim, eu ando com marca-páginas do Curitibocas. Nunca se sabe quando surgirá uma oportunidade de fazer propaganda.
- Ninguém consegue ler concentrado antes de dormir.
- Sim, sim, mas... - seguia remexendo na minha bolsa. Não consigo conversar e encontrar um objeto na bolsa ao mesmo tempo. Sou imperfeito. Priorizo marketing a uma discussão na porta de um consultório.
Sacralizar a leitura com um objeto certo, um momento certo e um método certo para ler é bobagem. Emprego aqui "leitura" no sentido amplo. Lê quem ouve música com atenção ou observa uma obra com cuidado. Desde que exista uma reflexão além da simples absorção do conhecimento/informação, já há um ato de leitura. O suporte livro é maravilhoso. CDs, DVDs, telas, gibis, LP, entre outros, também.
O fetiche dos livros se estabelece até na ciência. É comum os institutos de pesquisa mensurarem a cultura de uma região de acordo com a quantidade de livros lido anualmente per capita. Esse tipo de pesquisa é importante demais para ser analisada em módulo.
Aí vem aquelas fotos de revistas e jornais com o suposto pensador a frente de uma estante cheia de livros. Ou o que dizer dos psicólogos e advogados, que adoram deixar à mostra sua vasta carga intelectual em seus locais de trabalho. Convenhamos, não precisa ser intelectual de mídia, nem advogado ou psicólogo para ter um monte de livros enjaulados.
Até entendo se for um livro de consulta. Mas manter a "Revolução dos Bichos" encalacrada na estante é um crime. Acredite, se você reler o livro, o porco Napoleão terminará como o dono do granja. De novo. Aplausos para os que enxergam a bobagem do aforismo "empresto tudo, menos mulher e livro".
O médico me chamou. Não tive oportunidade de dizer tudo isso na hora. Só tive tempo de dar um marcador e recomendar (com total isenção) a leitura do extraordinário Curitibocas - Diálogos Urbanos.
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Tenho a esperança que o marcador de páginas desperte a curiosidade dela. Quem sabe ela entra no Google e digita "Curitibocas". Se você estiver lendo isso, por favor, não se sinta intimidada pela minha curiosidade em relação ao que te levou ao médico. Só mandar um e-mail que este será um segredo nosso.
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